E o ano acabou…

Nosso fim de ano foi meio conturbado por alguns incidentes, mas aqui estamos com nossa última postagem deste ano.

Falei sobre prêmios e estão sendo revelados aos poucos e com eles estou construindo minha listinha de férias.

O Jabuti premiou como melhor romance um livro que já citei aqui  e que certamente estará em minha lista de melhores leituras desse ano - O Avesso da Pele do Jefferson Tenório -  e que continua, até o momento em que escrevo esse post,  no páreo para outras premiações. Continuo acompanhando todas.

Terminei recentemente de ler o belíssimo Manuelzão e Miguilim de Guimarães Rosa.

Não vou falar muito mais sobre ele, apenas que leiam e sintam a plenitude que esse pequeno livro nos dá. Perfeito para um fim de um ano tão conturbado e, para muitos, triste.

E os neologismos do Guimarães, que tanto assustam os leitores, são de uma beleza infinita. Os colocaria, muitos, facilmente em meu dicionário particular. Nada difícil de entender: deslembrar, embriagatinhar, circusntristeza, ensimesmudo...

"Cada autor deve criar seu próprio léxico, do contrário não pode cumprir sua missão" — Guimarães Rosa


Existem também as palavras lindas, já nos dicionários, e tão pouco usadas. De imediato me vem à lembrança minha neta Isadora, hoje com 14 anos. Aos 8 aninhos descobriu a palavra arrebol, que já comentei em postagem anterior.  Para ela, a palavra mais linda do mundo. Não perde oportunidade de utilizá-la . Cito arrebol para falar de aurora, uma palavra esquecida e um nome que devagar vem ressurgindo.

Coincidentemente, os livros sobre os quais quero falar hoje trazem personagens chamadas Aurora.

Romance de estreia da jovem autora Carla Madeira. Uma bela estreia!

Difícil discorrer sobre esse livro sem dar spoiler e comprometer ao leitor a surpresa que, aqui, não posso dizer gostosa de tão dura que é. A autora em entrevista quando do lançamento definiu assim seu livro:

"Ele tem uma provocação sobre o que é a condição humana, no sentido de que somos todos capazes do bem e do mal. Traz a pergunta se é possível perdoar o imperdoável. Traz a questão da humanidade nos personagens. A situação que abre o livro é muito violenta. Uma coisa brutal. Os personagens precisam viver e seguir uma trajetória para sair da imobilidade. A ideia central é esse exercício da humanidade, sem maniqueísmos. Todos temos a potência para o bem e para o mal"

A narrativa sobre três personagens em uma pequena cidade é conduzida a sangue, suor, lágrimas e saliva. A começar por Lucy, a prostituta por vocação mais despudorada e arrogante da região. Acostumada a ter a atenção de todos, entra em choque ao não ser cobiçada por um dos frequentadores do prostíbulo, Venâncio, por quem logo se apaixona. Há um motivo para essa falta de interesse: o homem, carrancudo e reservado, guarda um grande remorso por ter cometido um crime brutal que resultou em perda trágica para ele e sua esposa, Dalva.

Aurora, nesse contexto, não é central, mas, para mim, o personagem mais ricamente definido e construído. Ela é a mãe de Dalva e o centro de uma família alegre e unida por fortes laços. Aurora é o nome que a resume. Traz a qualquer lugar a esperança de um renascer.

Difícil para mim esquecer de como a autora a define:

"Aurora é uma mulher sem quinas…. ela não faz só o que dá prazer, mas faz com prazer tudo que precisa ser feito"

Tem sido atualmente meu exigente exercício de vida. Reconhecer e aparar quinas e viver com prazer! Olhar a vida como um rio, é uma grande metáfora.

Enfim, Tudo é Rio, é uma prosa das mais gostosas de ler, é um livro "redondinho", no sentido de que as peças se encaixam dando a sensação de um final esperançoso.

Daí, fui ler o novo livro da também jovem Mariana Salomão Carrara, autora do pequeno grande livro Se Deus me chamar não vou, que li há uns dois anos.

Aurora, aqui sim, a personagem central. Uma septuagenária que foi encontrada em situação de total confusão mental e enviada para um abrigo. O livro é um conjunto de memórias, algumas reais e outras nem tanto, que são contadas por Aurora em conversas que mantém com a Assistente Social, Rosa, funcionária do abrigo, com a qual estabelece um laço de afeto. Rosa tenta fazer desses relatos uma história de vida de forma a poder devolver Aurora para um possível convívio familiar.

“para uma amnésica, Aurora recorda-se de muito: da mãe que escovava seus cabelos até parecerem ‘uma peruca eletrizada’; do seu ato falho trágico religioso, de quando rezava na infância e dizia ‘agora é a hora da nossa morte amém’; dos anos em que deu aula de português em uma escola de riquinhos; da sua covardia perante a ditadura militar: ‘este país insiste que temos de arriscar a nossa própria vida, parece que esquece que tudo que temos é essa miséria da própria vida’”.
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— escritora Tati Bernardi, na orelha do livro

Esse livro me sugou, no sentido de fazer mergulhar na angústia tanto da Aurora como de Rosa. Semelhante, em alguma medida, a sensação que senti ao ver o recente filme The father e o drama de uma mente com Alzheimer.

Um livro sobre afetos familiares, sentimentos dúbios e incoerentes, tão próprios de toda e qualquer subjetividade. As boas lembranças mesclam-se às más e a ficção, que é a memória, vai sendo construída em um ambiente cheio de altos e baixos.

Em muito a autora superou seu romance anterior, e fica aí minha aposta para as premiações de 2022.


E assim encerramos esse ano.

Quero deixar com vocês um trecho de Minguilin, que acredito perfeito para guardarmos conosco sempre:

“o que o Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa alguma”.

Que venha 2022, renovados e com muita esperança!

Fiquem bem e até a próxima.

📚Heloiche Lê
 

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