Para além do arrebol

Eu conheci o poeta Manoel de Barros pelas mãos de meu irmão Paulo Marcio. Ele presenteou minha neta mais velha Isadora, hoje com 13 anos, com dois livros.

Ela muito pequena, e como todas as crianças pequenas adorava poesia. Nesses poemas de Manoel de Barros ela foi apresentada para a palavra arrebol. E até hoje, faz parte do nosso vocabulário particular. Vira e mexe ela me liga e fala “ vovó veja hoje tem arrebol”, quando vê um lindo pôr de sol. Quando estamos na praia sempre é programa ir ver o arrebol. Acho que é a palavra mais bonita que conhece. E é linda mesmo como tudo o mais de Manoel de Barros, que tem tudo a ver com meu irmão em gostos e saudades, como podemos ver nessa nova linda edição do Heloiche Lê escrita por ele.


"Menino do Mato"
Manoel de Barros

Eu nasci num recôndito pedacinho do interior de São Paulo.
Ainda o trago em meu coração; hoje, como então, indecifrado.
Menino solto, calça curta, pés no chão e cabeça na lua. Palmilhei cada centímetro daquelas paragens em busca de encantamentos. E fui preenchido deles, sob > o sol generoso que somente lá bate.

Mais amigo de bichos e de plantas que de gentes. Nunca estive solitário em minhas andanças, pois bichos emplumados, alados, andantes ou rastejantes, árvores, frutas, > flores e muita imaginação foram companheiros onipresentes. E o sol, a chuva e a brisa que sempre sopra no meu paraíso de sonhos e lembranças vivas.

Aí, um dia, mudei-me para a cidade grande. Grande?! Põe grande! É tão grande quanto distante.

Sem sol, sem grama; sem arrebol, sem lama. Sem caracol, sem rama; sem girassol, sem panorama.

Chegando em boléia de caminhão, gato no colo e susto no coração, pensava no meu distante chão.

O tempo passou ligeiro e fui me acomodando.

Foi quando conheci e encantei-me:  li Menino do Mato de Manoel de Barros.

Descobri Bernardo, um menino como eu. De palavras e pensamentos estranhos, mas, ao mesmo tempo, me pareceram familiares.

Manoel de Barros, já exibindo ser "diferente", escreveu 'O primeiro poema' em sua última página.

E dizia ele:

"O menino foi andando na beira do rio
e achou uma voz sem boca.
A voz era azul.
Difícil foi achar a boca que falasse azul.
Tinha um índio terena que diz que falava azul.
Mas ele morava longe.
Era na beira de um rio que era longe.
Mas o índio só aparecia de tarde.
O menino achou o índio e a boca era bem normal.
Só que o índio usava um apito de chamar perdiz que dava um canto azul.
Era que a perdiz atendia ao chamado pela cor e não pelo canto.
A perdiz atendia pelo azul."

Mostrava-se  diferente, inusitado, lá no meio do mato. Que olhar era aquele? Eu sentia isso. Também me estranhava por lá! Uma sintonia estranha, mas que produzia bom som, boa harmonia. E eu poderia ser igualmente diferente em meio a cidade grande, pois trazia o mato em mim.

Assim tentei me traduzir:

SEM COR

Lá em meu paraíso eu sempre fui o diferente.
O que fazia tudo diferente.
O que estudava diferente.
O que tinha o professor diferente.
O que tirava a nota diferente.
O que vestia diferente.
O dono da bike diferente.
O filho da mãe diferente.
O filho do pai 'tubarão', diferente.
O que morava na casa diferente.
O que olhava o horizonte diferente.
O que caçava o passarinho diferente.
O que olhava para a menina diferente.
O que o pai examinava diferente.
O que a mãe chorava diferente.
O que o irmão era estranho, diferente.
O que o amigo era pobre, diferente.
O que almoçava na hora diferente.
O que apanhava diferente.
O que volitava quieto, diferente.
O que despertava sentimento diferente.
O que se rebelava, ousava diferente.
O que entrava no time por caminho diferente.
O que permanecia no time por ser diferente.
O que colhia o fruto diferente.
O que dava o presente diferente.
O que achava a chuva diferente.
O que achava o barro da rua diferente.
Para quem a poça d'água era diferente.
Que olhava o céu, só seu, diferente.
Para quem o arco-íris brilhava diferente.
Que dividia a cana cortada para o burro no coxo, e era diferente.
Para quem o sol faltava na noite, diferente.
Para quem a noite era escura para as estrelas de luz diferente.
Para quem sonhava a saia voando da menina do sonho diferente.
Com quem as margaridas-do-campo falavam uma língua diferente.
Como quem sentiu-se eternamente diferente,
Mas que desejou tanto o sem cor diferente.
Com a cor permitida por cada momento;
E tão igual a cor de todas as cores de todos os momentos.
Como a cor que não me fizesse diferente.
O colorido que sempre desejou ser incolor.

— PM

E continuei lendo Manoel de Barros, sem nunca parar,  cada vez mais conquistado por ele:

De O Guardador de Águas (1989), separei um pequeno excerto, muito expressivo em seu enlevo:

"Desde o começo do mundo água e chão se amam e se entram amorosamente e se fecundam. Nascem peixes para habitar os rios. E nascem pássaros para habitar as árvores. As águas ainda ajudam na formação dos caracóis e das suas lesmas. As águas são a epifania da criação."

Os Filólogos buscaram classificar Manoel de Barros em alguma escola literária. Um Modernista de 45? Ou pós Modernista? Um poeta Pau-brasil? Ou um Antropofagista de Oswald de Andrade?

Ele importou-se menos com isso. Apenas fez a poesia que seu coração de eterna criança determinou.

Viveu servindo-se e dando-se a servir à sua cativa plateia natural e inspiração constante. Em sua fazenda no Pantanal do Mato Grosso, escreveu versos e prosa até os seus 98 anos (1916-2014).

Poetou, Manoel de Barros, em Menino do Mato:

"Eu queria fazer parte das árvores como os pássaros fazem.
Eu queria fazer parte do orvalho como as pedras fazem.
Eu só não queria significar.
Porque significar limita a imaginação.
E com pouca imaginação eu não poderia fazer parte de uma árvore.
Como os pássaros fazem."

Jamais identifiquei-me tanto com um poeta como o fiz com Manoel de Barros! Eu o entendo e o sinto como a um intérprete autorizado de meus meandros.

Ninguém sabe mais da essencialidade humana do que as crianças, os velhos e os poetas. Manoel de Barros os resume a todos, e a um só tempo.

Em humilde e atrevida reverência, escrevi:

MOLEQUE SEM BREQUE

Sou pequeno, inda menino;
Ermo, sob o sol do vilarejo.
Caminho solto, sem destino,
Sem pejo, sem pressa, sem desejo.

Ouço o canto, vejo o grilo.
Sinto o vento, toco o mato.
Não sou isso, nem aquilo,
Só o murmúrio do regato.

Cresci, hoje sou grande.
Já não posso o que podia;
Há tão pouco que me encante,
Onde está minha alforria?

Qual é mesmo o meu nome,
Ou por que faço o que faço?
O cotidiano me assome,
Do que fui, sou só um traço.

Ou voltar a ser menino,
Ou regalar-me com o adulto.
Não há mais o sol a pino,
Nem da vida tenho indulto.

Meu paraíso paira longe,
Só está dentro de mim.
Nem herege e nem monge,
Cada tempo tem seu fim.

Não o sol do vilarejo,
Nem o cru da sua ausência.
A vida não é bocejo,
Nem castigo, nem clemência.

— PM


PARAÍSO

São margaridas do campo,
Coroadas por um arrebol.
Nelas, meu tempo estampo:
Calça curta, pé no chão e futebol.

Inda padecia o tempo do sarampo.
Da cristaleira, do alpendre e do anzol.
Do anil quarado para o melhor branco,
E pro xixi da noite, o urinol.

E o tempo se vai, baita trampo!
O sem camisa!? Hoje, cachecol!
Troquei o ataque pelo meio-campo,
E o passo esperto, pelo caracol.

As margaridas ainda são do campo,
O céu da cidade, carece do sol.
Restam, a luz do pirilampo
E a embotada lembrança do cerol!

— PM


Ainda de Manoel de Barros, de sua mais pura sensibilidade:

"No gorgeio dos pássaros tem um perfume do sol."

Até o próximo.

Protejam-se. Usem máscaras, distanciamento e álcool nas mãos e braços. O SARSCOV2 mata.

Paulo Márcio
👴avô, 📝 poeta, e 📚 leitor voraz

📚Heloiche Lê
 

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