Velhos, velhos, velhos... e seu lugar na literatura

Retorno de férias é tão gostoso.

Sempre me lembro de perder o sono na noite anterior. Quando menor, porque teria que desenhar minhas férias e quando já alfabetizada, fazer a malfadada redação. Muitos anos se passaram desse tempo, e a agonia das crianças persiste. Meu neto João ensaiou antes o desenho dele no cavalo, que seria tarefa árdua. Os outros dois não sei o que escreveram, mas certamente não foi sobre as leituras programadas que tomaram poeira na cabeceira de cada um.

Mas é isso mesmo. Férias é sinônimo de descompromisso, do fazer o que "der na telha naquele dia", ou simplesmente não fazer nada.


Eu, toda feliz vacinada, tinha planos de reencontrar irmãos e amigos de alguma forma. Nem eram planos, era uma saudade enorme. E aí tudo começou a se modificar, e nós os velhos felizes e vacinados viramos mais outra vez alvo preferencial do vírus, novamente isolados aguardando a terceira dose. E assim vamos levando essa pandemia interminável e deixando os reencontros para depois. Depois do que? Não sei.

Outro dia, conversando com uma amiga, disse que tenho a sensação de que estou envelhecendo num ritmo muito acelerado. Ela concordou, disse que entrou na pandemia sem nem pensar muito sobre a idade e sai dela uma idosa cheia de comorbidades.


Ganhou luz nesses últimos 18 meses um fenômeno discriminatório social ao qual eu não dava a devida atenção - o idadismo - a discriminação e preconceito baseados na idade, geralmente das gerações mais novas em relação às mais velhas.

Envelhecer no Brasil nunca é uma tarefa das mais fáceis. E ser velho na pandemia é um desafio diário.

Um grupo de intelectuais europeus publicou em maio de 2020 uma carta aberta denunciando a ‘cultura do descarte’ do idoso durante a pandemia. Isso ocorre também no Brasil? Muito. Todo preconceito de idade, que eu chamo de ‘idadismo’, que já existia contra os idosos, apenas aflora, aumenta com a questão da Covid. ‘Deixa morrer! Jito! E daí?’ Parece que ninguém se importa mais com a morte de alguém que já viveu. É o que eu tenho chamado de gerontocídio.

fonte: Preconceito contra idosos cresce na pandemia, diz ex-diretor de envelhecimento da OMS

Aí comecei a pensar em como o idadismo já existia, principalmente no plano individual, pela via da negação da velhice. Especialmente para as mulheres, sendo que, durante a pandemia, quando afloraram cabeças brancas femininas entre espantos e "elogios amarelos", apareceram tipo: "está bonito mas envelhece".

Idadismo junto com machismo ganha uma forma ainda mais cruel. Alguns devem se lembrar da Xuxa, a famosa e linda rainha dos baixinhos, recebendo comentários desagradáveis sobre sua aparência atual; a Betty Faria, sobre sua coragem de aos 80 anos colocar um biquíni na praia. Envelhecer é feio, e aparentar sua idade ao olhar brasileiro parece ser descuidar-se. O maior elogio a ser recebido é o de que você não aparenta a idade que tem. Aquele famoso, “está tão conservado!”, que nos faz sentir um pickles.

Nas individualizadas e flexíveis formações identitárias atuais, prevalece, de um modo geral, o ideário do envelhecer bem associado ao manter-se ativo, bem-disposto – e jovem.

No binarismo normativo e hierárquico entre velhos e não velhos que permeia a construção social da juventude como padrão desejável, os jovens estão associados a atributos como saúde, beleza e sucesso. Para os mais velhos, reservam-se as conotações desagradáveis relacionadas com a deterioração de sua condição física e/ou mental na senescência. Fruto de uma combinação insidiosa entre idadismo e machismo, essa situação é mais dramática para as mulheres.

fonte: O idadismo como viés cultural: refletindo sobre a produção de sentidos para a velhice em nossos dias


E na literatura como são (re)tratados os personagens velhos?

Este estava na minha estante há tempos. Foi lançado no embalo do sucesso de seu primeiro livro Laços.

Em Assombrações, a história orbita ao redor de Daniele Mallarico, um ilustrador já idoso, às voltas com a finitude da própria vida e obra. Convalescente de uma cirurgia, é convocado pela filha, Betta, para ir até a cidade onde mora, cuidar do seu filho, neto dele. A cidade é Nápoles, a mesma onde o próprio Daniele cresceu, pois Betta irá viajar com o marido, Saverio, para um congresso.

É um enredo bastante… diria, simples complexo, pois o autor a partir de trivialidades faz emergir conflitos dos mais importantes. Daniele vive alheio à família (praticamente desconhece o neto e a situação atual da filha; mais tarde, revela-se que sua relação com a esposa também foi distante) e, além disso, tem de lidar com uma encomenda de trabalho que logo se mostrará problemática.

Convidado por um jovem – e aparentemente arrogante – editor, tem de ilustrar o conto “A bela esquina”, de Henry James, para uma nova edição. Só que ele não consegue resultados que satisfaçam ao editor, a si, ou mesmo ao neto, que vê os esboços. O velho ilustrador, sentindo-se obsoleto, o jovem editor, com poder, e o neto, na infância, esses três personagens já demarcam um dos temas do livro: os conflitos geracionais entre pessoas de tempos e realidades diferentes.

...minha filha nunca se esforçara em me dar crédito. Do resto o que era credito? Não havia nada mais instável. Nos últimos anos, ninguém me demonstrava apreço como antigamente, muitas coisas tinham mudado. Seja como for , paciência - disse a mim mesmo - , qual a importância disso, o essencial é que ainda estou trabalhando.

Até agora eu tinha levado adiante fingindo que estava no pleno vigor das minhas capacidades ativas….. O sucesso, quando chegou, me pareceu natural, nunca tinha feito nada para obtê-lo nem para conservá-lo: minhas obras simplesmente mereciam ser reconhecidas. Talvez justamente por isso tenha durado tanto tempo a impressão de que o sucesso era de uma substância que jamais deterioraria. Sendo assim, tinha sido fácil perceber que os trabalhos estavam diminuindo, que o mundo no qual eu tivera certo prestígio fora substituido por outros mundos não intuídos há tempo, por outros grupos de poder que nem sequer me conheciam, por forças jovens e agressivas que ignoravam tudo do meu trabalho ou que, se me procuravam, era para ver se eu podia ser útil a sua ascensão. Mas agora - disse a minha mesmo - já não posso ignorar os sinais do declínio, ......, o telefonema ofensivo do meu contratante; daquele exaurimento da imaginação do qual eu não conseguia sair; e minha filha, minha única filha, que me aprisionara sem que eu percebesse no papel de velho avô.

Assombrações e fantasmas!? Daniele sente-se cercado por eles – é inclusive um fantasma de si próprio – e esse retorno à cidade onde cresceu, à casa onde também viveu, à proximidade da família e às lembranças afetivas que o farão questionar a própria identidade e lugar no mundo.

Nao suporto conversar com o menino me autodefinindo como vovô. Não sou o vovô, sou eu. Não sou uma terceira pessoa, sou uma primeira.

Nem preciso dizer que esse livro "quebrou-me as pernas". Envelhecer e tornar-se um fantasma de si mesmo foi uma imagem muito forte, junto a perda de seu eu. Uau!


Para suavizar peguei na estante uma HQ, coleção de tiras, de um personagem que me fez rir há alguns anos. Um perigo, pois agora, com novo olhar, o encanto pode se quebrar.

Para relembrar ou dar a conhecer o personagem, nada como algumas tiras:

Sim, são as mazelas do envelhecimento sendo retratadas tira a tira. Uma paródia, feita por um neto amoroso, reza a lenda. Sorrisos amarelos de minha parte, mas acho que mais gente, jovens principalmente, deveriam ler e refletir sobre as situações retratadas e de onde vem o humor!


Tenho aqui uma pequena lista de livros sobre a decrepitude do envelhecimento, mas adoraria receber mais sugestões. Quero muito "ir ao oriente" onde, me parece, a velhice tem outro tom.

Assim, ficamos. Aos meus queridos velhos, continuem se cuidando e muito, pois como diz minha irmã "sequelas rimam, mas não combinam, com nossas mazelas da idade".

Em tempo, num esforço para combater o idadismo, termo que define o preconceito contra os idosos, a agência Artplan lançou a campanha #OrgulhoSessentaMais, que se propõe a abrir um diálogo com as marcas e com a sociedade para mudar a forma com que a população de mais de 60 anos é retratada. Aderi total a essa pauta como ativista.

E durma com um barulho desse!

Até a próxima...

PS: A partir de 1o. de janeiro de 2022, a velhice será tratada como doença pela Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) da OMS (Organização Mundial da Saúde), sob o código MG2A

📚Heloiche Lê
 

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