Há um conceito cultural anacrônico de que estas duas "entidades" são imiscíveis, não se misturam. Não concordo. Não é o que observo. Sinto a realidade quase no oposto a este conceito. Mero conceito.
Se considerarmos as características essenciais da juventude adolescente veremos que tal natureza pode ser satisfeita pela literatura, pela busca nos livros da referência de que naturalmente carecem. Assim, curiosidade, inquietação, incertezas, apreço pela aventura e excitação pela fantasia. Busca de identidade, procura por heróis, anseio por autonomia e liberdade. Necessidade por modelos de comparação e assustado recolhimento tímido. Busca do outro e temor pela rejeição.
Este, um resumo da experiência do jovem adolescente. Querer ser algo sem identificar exatamente o quê e, ao mesmo tempo, temer tudo que anseia. Além da enorme tentação por permanecer eterna criança.
Qual o refúgio para experimentar impunemente este universo de contradições, vontades e sonhos?
Um livro.
Portanto atraem-se naturalmente e se não houver estranhamentos, um idílio se iniciará e permanecerá alimentando uma fome que jamais saciará.
Crianças e jovens adolescentes, como leitores ou protagonistas de histórias, é um encontro programado para ser, no qual a identificação mútua se faz por olhares trocados. Onde o livro enxerga o jovem pelo olhar do jovem, assim como o jovem vê o livro por sua própria magia.
Vamos falar dos jovens com os livros nas mãos ou contidos neles. Os lendo ou os vivendo, alegres ou sofrendo, viajando, desvendando e conhecendo.
Os amando como fuga ou alternativa, mas sempre fazendo deles ferramenta de transformação, aprimoramento e crescimento pessoal.
- "Sou uma mulher?"
Não.
- "Ainda criança?"
Também não.
- "Mas...e estas espinhas?"
E daí?!
- "Minhas sardas?"
Importam pouco.
- "Então, quem sou?"És quem és. Mulher e menina. Menina e mulher.
Quem me dera saber o que traz em si. O que te faz buscar os tantos livros que lê. E, insaciável, os busca ainda mais.
O que a faz os devorar e provocar convulsões de alma?
O que, tão jovem ainda, te fez cativa deles? Que a fazem sonhar e irar. Sair de si, das referências aceitáveis, para o simples desatino. Desatino ingênuo, mas não muito, posto que tornam seus sábados e domingos verdadeiros oásis da tediosa semana de pedagogia questionável.
Que trazem inquietação pelo inusitado; pela percepção difícil da riqueza que encerra. Muito além de suas, ainda presentes, sardas e espinhas, que te marcam aquém de onde já está!
Inquieta, mergulhada para além de qualquer controle que não seja sua ânsia imprecisa, em busca da baliza da literatura.
Por ora, você e eu, pelo nosso pacto de genes, basta ficarmos frios! E, certamente, o seu derredor também.
— Paulo Marcio
Uma menina, então com oito anos, em 2011, prisioneira em sua cidade natal, Alepo, começa a registrar seu dia a dia dramático em meio a uma guerra sem sentido - se é que alguma o tem.
Teve seus relatos reunidos até 2016. Copiados, publicados e agora dispostos a quem quiser lê-los.
Uma tragédia humana, uma brutalidade. Uma violação sagrada, um sacrilégio: usurpar a inocência de uma criança. De milhares de crianças. Pequenos seres humanos usados como se seres humanos não fossem, para busca por poder e satisfação de vaidades pessoais. Inocência a serviço da indecência. Riqueza em cores nas mãos de perversos pintores, obcecados pelo vermelho rubro do sangue que flui do viço da vida.
Uma guerra que é travada todos os dias, não só na conflagrada Síria, mas em todos os países do mundo, em todas as cidades, em cada um de seus bairros e em todas as casas de cada bairro de cada cidade. Como também, e principalmente, no palco privado dos conflitos internos de cada um.
Por que há guerras?
Para que empresas usufruam lucros?
Não só.
Há guerras porque o homem traz guerras dentro de si e busca através delas sua pacificação interior.
Jamais a encontrará na revolta e na morte.
O homem não muda, é cego. Portanto, Myrians, Rywkas, Annes, Marias e Teresas, meninas violadas; Pedrinhos e Carlinhos, meninos exigidos como guerreiros, trocando estilingues por fuzis, continuarão cedendo seu sangue de pura esperança e seus sonhos do mais puro azul.
Guerras, com seus mocinhos e bandidos, sempre houve, há e sempre haverá, e estas meninas e meninos a estarão suportando com seus corações, mentes e corpos inocentes.
"Água que corre entre pedras."
Sou da roça e em minha roça não havia guerras. Não havia Alepos em minha roça. Não havia arianos em minha roça.
Manoel de Barros me disse que, "quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras."
Quero ser água que corre entre pedras na minha roça.
Quero ser livre e o pensamento voar. Quero andar solto, eu e meu amigo Zé Ito, de quem nunca soube direito o nome, meu amigo de calça-curta. Venha comigo, é esta a nossa roça.
Anda a ermo e levante uma pedra para ver o que esconde.
Pegue aquela flor e assopra, só para ver se voam pétalas. Aquele inseto que pousou sobre seu braço não pica, mas tem lindas asas multicor.
E alguém gritou: "fogo-apagou!" Você viu, era um pássaro nada multicor, até feio em tons de marrom, mas lindo.
Dê-me cá esta haste de grama. Puxo de cá, puxa de lá. Quem ficar com a haste, ganha.
Agora salta, eis o mata-burro. Não salto, passo equilibrado por este tronco; não sou burro, não morro.
Olhe a moita de bambus! Haverá dentro um saci? Um gnomo? Sei não, mas escrevi pm; meu nome impresso num gomo de bambu.
Olha o riacho fresco, água de espelho, raso e pitoresco. Dá para atravessar a pé e quanto mais quente o sol, mais frio ele é. Estranho, burlesco.
Adoro pés no chão. Manga verde, carambola amarela, jambo e mamão. Deste, com o cabo da folha, assopra forte e vira rojão.
Aprume o ouvido, há no ar uma linda canção. Tão mais linda que bomba e canhão. É ligado no nada que você vê o tudo, saiba! O que vê é o tudo, o que não vê, é o nada.
Parece simples, e é. Porque a vida é simples.
Os mata-burros têm que ser deixados para trás, nunca trazidos na bagagem dos andantes.
— Paulo Marcio
Svetlana Aleksiévitch,craniana, preserva em si a riqueza narrativa própria da Literatura russa. Jornalista por formação, Nobel de Literatura de 2015, a partir de acurada pesquisa, nos traz um relato tocante e aprofundado através de testemunhos vivos, então ainda crianças, das atrocidades cometidas na invasão alemã à Rússia na Segunda Grande Guerra.
Um livro que emociona e faz chorar. Que nos leva a duvidar da condição humana e ao mesmo tempo restaura a crença em tempos melhores, pelos depoimentos pungentes das testemunhas. Relatos que se repetem às dezenas, mas não cansam jamais. Apesar do enredo ser o mesmo, as diversas vivências tornam cada um completo em si mesmo. Crianças forçadas ao amadurecimento precoce. Adultos marcados de forma indelével por sua história.
Escreve Svetlana em seu epílogo:
"A infância acaba quando:
- Você para de acreditar em Papai Noel;
- Você começa a dar a volta nas poças d'água;
- Já não consegue pegar o controle remoto da TV e ligar para a mamãe;
- Vai ao banheiro de noite e não tem medo de que alguém te devore;
- Já não acredita que pode alcançar a lua com a mão;
- Você puxa a colega de sala pelas trancinhas e ela não chora, e sim ri."
Uma obra que vale ser lida. Um depoimento necessário que se conheça. Uma triste página da história recente.
CANTO DESAFINADO
Terei sido eu um menino,
Nalgum tempo sumido lá atrás?
Sondo, não sei, será que alucino?
Ao nascer, já me vejo um rapaz.Perdeu-se num lapso de memória,
A minha primeira infância.
Falta um pedaço da história.
Há uma sofrida vacância.Como posso viver sem brincar?
Impossível, sem sentir-se seguro.
Ou correr e voar, sofrer e amar?
Se não tenho passado, como crer no futuro?Ainda pequeno, cuidei de adulto.
Às cegas busquei um rumo qualquer.
Eu era um anjo, isto foi um insulto.
Não pude chorar um instante sequer.Onde ficou a outra mão na minha mão?
Por que a minha teve que ser a mais forte?
Em que instante desafinou a canção?
Não há na vida o que esta lacuna conforte.— Paulo Márcio
PANDEMIA
Escurece e alumiaA natureza humana em seus critérios estranhos. Assim como o sal que salga, conserva a carne; ou o vinagre azedo, apetece o alface. Como o raio e o trovão que ameaçam, acompanham a chuva que alimenta a vida; ou o fogo que queima e mata a planta, induz sua rebrota.
Como o breu da noite que encobre o rumo é o mesmo que traz a luz da manhã e restaura o rumo certo.
Assim, num universo de contrastes, a praga traz o alento. É no mais profundo sofrimento que se vê a centelha da vida.
Não é no navegar em céu de brigadeiro que se sente a importância das turbinas, mas em meio a tormenta. Não é à mesa farta que valorizamos o alimento, mas no ronco profundo e privado do estômago vazio diante da mesa nua.
Ironia de contrastes, onde a ida sugere a volta ou o fim segue-se de um recomeço. Confronto da fantasia de onipotência com a realidade que se impõe. Chamado à condição humana, toda invejada do poder que almeja, mas não o tem. Que sente possuir, mas é vazio, pois é fraco e não vê por olhos cegados pela ambição tola de tudo controlar.
E que graça haveria em fazê-lo? Antecipar os tempos e vencer um jogo manuseando cartas marcadas! Vitória de Pirro, onde ganha, mas nada leva.
Que mérito houvera?
A pandemia nos banha de modéstia. De desnudamento de vestes que não nos vestem, apenas travestem.
Quem tiver olhos para ver e coragem para enxergar, verá. E sairá da crise melhor do que nela entrou.
Quem insistir em cegar-se, só fará perambular trôpego, sem nexo, plexo ou amplexo. Desconexo, sem sexo, não côncavo, nem convexo. Disforme, perplexo.
Não simples, complexo.
Sem sentido, ermo, inconexo.
— Paulo Márcio
"Escrever é como fazer amor. Não te preocupes com o orgasmo, preocupa-te com o processo."
— Isabel Allende, escritora chilena
Até o próximo.
Paulo Márcio
👴avô, 📝 poeta, e 📚 leitor voraz