O poeta Paulo Márcio Vieira da Rocha e seus 5 livros preferidos de 2020

Ratos e pardais, tão iguais!
Os pardais voam e mesmo emplumados por feias penas, mesmos sem gorjeios, são amados.
Os ratos, pobres ratos! Que graça têm?
Receios. São odiados.
Mas quem sabe deles, para além dos conceitos?
Não importa? Para que perguntar? São só ratos.
Há ratos. Há pardais.
Ratos serão ratos até nunca mais.
Pardais, de méritos e deméritos como seus rastejantes iguais, jamais serão menos do que a fantasia que deles se faz.
Ratos e pardais, tão iguais!

— Paulo Márcio Vieira da Rocha


Eu tenho a sorte de ter um irmão que escreve e que faz lindas poesias. Mais sorte ainda dele ter topado dividir comigo esse pequeno blog, sobre amor aos livros.

Somos dois filhotes de uma leitora inveterada que herdaram e que compartilham como hobby a leitura. Diferentes em gostos -, eu mais contemporânea ele mais clássico-, o que acho irá enriquecer em muito esse espaço.

Temos então seu primeiro post sobre seus preferidos de 2020.


Fui convidado pela Heloiche a escrever sobre livros. Senti-me honrado. Em comum entre nós o amor pela palavra escrita, prosa ou verso, e o sangue que flui rubro pelas avenidas de nossas artérias.

Não sei se agradeço pelo crédito ou a bronqueio pela atribuição que me torna cativo de um exigente senso de qualidade. Não fiz uma coisa e nem outra. Então perguntei: você tem certeza ou só expressa amor fraterno? A acompanham aqui há tempos, já sabem que sequer respondeu. Apenas disse: Paulo Márcio, quero sua lista dos cinco melhores de 2020.

Como diria o bom pescador: com tal isca, engoli o anzol, encasto e chumbada!

Li muita coisa boa em 2020, portanto muito texto bom ficará fora da "lista dos 5 melhores do PM de 2020”.

Reparem, disse "...do PM de 2020". Entre livro e leitor se estabelece uma relação viva e dinâmica, tanto que, o que foi bom, lido para o ano, poderá não ser mais. O contrário também é verdadeiro. Então, uma lista dos melhores é um retrato instantâneo de uma relação infiel, vale para aquele momento, como também não decreta nenhum juízo de valor sobre livros, pois as variáveis não são eles, somos nós, leitores.

Incluo aqui releituras, por atenderem a apelos de tempos há muito idos e há muito, lidos; hoje não mais pelo olhar do adulto jovem, mas do longevo pretensamente mais arguto.

A Sonata de Kreutzer, de 1889, é um romance filosófico de estrutura quase psiquiátrica.

Trata de maneira magistral, a partir de conceitos super atuais, com extrema lucidez e aprofundamento, a questão do ciúme patológico, da misoginia e do feminicídio.

Vai além de meras conceituações (o que já teria sido muito para a época) ao mergulhar ousadamente no conflito pessoal, na angústia, na ambivalência e na tragédia de seu personagem central. E muito mais: na infelicidade, na dor e no entramamento sem saída da mulher, objeto de toda ação patológica.

Tolstói, ainda no final do século XIX, nos dá uma lição de conhecimento sobre a natureza humana, seus meandros, aprisionamentos e destinos inexoráveis. Uma maravilha de obra sensível e impactante. Um romance curto, perfeito, completo.

Salve, Tolstói.


Uma autobiografia contundente que aborda a questão racial no sul dos EUA.

Maya Angelou nasceu em 1928 (San Luis) e faleceu em 2014 (Salen) aos 86 anos.

Publicada em 1969, descreve sua trajetória de vida desde criança até sua fase adulta jovem. Filha de pais separados, foi criada pela avó materna e um tio e volta a viver com a mãe a partir de seus 12 anos. De uma pequena cidade a um grande centro urbano, sua vida é narrada com delicadeza e linguagem poética, apesar das muitas circunstâncias dramáticas por que passou. Fez da religião, da cultura, da sólida educação sulista que recebeu da avó, e do despertar para a literatura, a base de toda sua trajetória de mulher negra, prisioneira da cor de sua pele e de severa discriminação.

Uma obra extremamente reflexiva, sem mergulhar na filosofia ou psicologia, apenas na vivência atenta, inteligente, minuciosa e existencialmente enriquecida e guardada na memória. Impacta, emociona, confronta e faz pensar.

Diz Angelou: "As pessoas vão esquecer o que você fez, vão esquecer o que você disse, mas não esquecerão o que você as fez sentir!"

Eu sei porque o pássaro canta na gaiola, mais que um ótimo livro, uma necessária lição de vida.

Angelou, em 2015, um ano após sua morte, foi homenageada com um selo postal americano, no qual se lê: "Um pássaro não canta porque tem a resposta, ele canta porque tem uma música!"

E Maya Angelou a tem.


Ainda não o conhecia. Este, o segundo romance de Machado de Assis, publicado em 1874, então com 35 anos. Sucedeu seu livro de estreia, "Ressurreição", dois anos antes, 1872 e, antecedeu "Helena", 1876, sua terceira obra publicada (esta em estilo muito diferente das duas primeiras).

A Mão e a Luva, embora tenha sido editada em plena fase romântica do autor e mesmo sendo uma estória de amor, foge completamente ao estilo clássico, ou seja, de "arrancar" suspiros apaixonados ou lágrimas de dor (como o fez em "Helena").

Destaca-se neste o estilo elegante de MA. Com enredo simples e texto conciso, ele nos brinda com preciosa escrita e riqueza de cuidados psicológicos de seus personagens. Narra a história de uma linda e elegante mulher, Guiomar, de personalidade forte e resoluta, vivendo sob a proteção de fausto e riqueza de sua tia baronesa. Pretendida como esposa, a um só tempo, por três homens de personalidades diferentes: Estevão, Jorge e Luís Alves.

A trama transcorre sem excessos de plumas e paetês ou muitos rococós. Flui sem muitas surpresas até seu final, quando revela-se o porquê do nome "A Mão e a Luva", em estilo bem machadiano. MA encanta com sua classe e habilidade para usar as palavras e nos surpreende a cada página. Como ao definir histórias de amor assim: "Velhas como Adão, e eternas como o céu." Ou ainda, quando fala da imaginação dos apaixonados: "A imaginação multiplica os zeros. Com um grão de areia, constrói um mundo."

Ou mais, quando diz, pela voz de Guiomar, a um apaixonado doente, não correspondido: Dou-lhe um conselho...seja homem, vença-se a si próprio; seu grande defeito é ter ficado com a alma criança."

(Com o q eu nem concordo: não seu grande defeito, mas sua maior virtude.)

Enfim, um livro simples e encantador. Em estilo tipicamente machadiano e menos romântico. Cabe aqui assinalar que, A Mão e a Luva não foi bem recebido pela crítica, exatamente por isso. Em seu livro seguinte, "Helena", abdicou de seu estilo, que tb havia utilizado em seu primeiro livro, para atender à crítica. Exagerou na mão e escreveu o que é considerado até hoje, a obra na qual Machado de Assis mostra-se mais descaracterizado. Volta e aprimora suas raízes literárias até quase a perfeição em sua fase realista.

Eu gostei, sou suspeito, amo Machado.


Conheço grande parte de sua obra, desde há muito. Seria para mim uma releitura, não estivessem meus registros de memória meio perdidos no tempo, mas muito vivas as lembranças do quanto apaixonei-me pelo livro e autor.

Leon Uris é um escritor americano, judeu, nascido em 1924 e falecido em 2003, aos 79 anos. Sempre celebrado pelo esmero e rigor de suas pesquisas históricas que antecederam suas obras. Cria magistralmente personagens para nos mostrar a história real. Particularmente, gosto muito deste estilo. Como também admiro sua forma de escrever. Simples, sem ser singela; estilosa, sem ser rebuscada. Direta, sem deixar de ser lírica, e aguda sem deixar de ser afetuosa.

Mila 18 (1961), mostra todos os acontecimentos que antecederam e transcorreram durante a ocupação pelo nazismo alemão na Polônia, na Segunda Guerra. Mais especificamente, no gueto de Varsóvia que, absurdamente, "acomodou" (?) mais de 600.000 judeus, poloneses e de toda Europa, que foram submetidos a todo tipo de crueldades e sistematicamente exterminados, até sua destruição completa em 1943/44.

Novamente, a genialidade de Leon Uris cria personagens e nos conduz pela mão a todos os meandros desta história triste e fantástica.

Para terminar, o último parágrafo do livro de 700 páginas, pela palavra emocionada e emocionante de um de seus protagonistas:

"Não é curioso que o cúmulo da desumanidade do homem para com o homem, pudesse também ser o cúmulo da nobreza do homem!"

Recomendo.


Pssica, publicado em 2015, do pouco conhecido escritor paraense, Edyr Augusto. Autor de romances, contos, poesias e crônicas, já foi traduzido em diversos países e é especialmente aclamado na Inglaterra e França.

Pssica, que significa "praga", "maldição" no linguajar regional, narra em estilo alucinante, sem tréguas ou eufemismos, uma sociedade decadente, regida por ambições, vinganças, primitivismo e barbárie, no extremo norte do Brasil.

Através da vida de Jane, jovem adolescente, bonita, de família pobre e repleta de preconceitos, o autor nos apresenta friamente, além dos costumes, a realidade cruel da exploração de adolescentes, tráfico de escravas sexuais, decadência moral e política, depravação de valores, drogas e banditismo. Ainda muito jovens, rapazes e meninas, submetidos e imersos em um submundo difícil de crer, fácil de negar, mas que aí está, principalmente nas longínquas regiões de fronteira deste nosso esquecido país.

Belém, ilha de Marajó e Caiena (capital da Guiana Francesa), são o palco desta narrativa forte e impactante. Mas real.

Leitura ligeira, 92 páginas, de uma exposição em ritmo vertiginoso, impressionante e perturbador, que envolve o leitor num carrossel de luzes que ofuscam e giram de forma incessante até seu final. Onde vítimas e bandidos, perdedores, alternam-se numa saga de crueldades, sofrimento, paixão e amor.

Pssica (Boitempo) de Edyr Augusto, experiência que enriquece como leitor e, acima de tudo, como pessoa.


Aí está. Como todo bom recruta: tarefa atribuída, tarefa feita. E amei fazer.

2020 mal se foi e já iniciei com forte candidato à lista PM de 2021; estou mergulhado e divertindo-me muito numa tradução de 1968 de Guerra e Paz do fantástico Liev Tolstói. E a lista de espera é longa e só faz crescer. Vejam só: hoje saí de casa para comprar pilhas. O sol ardia e vitD está na moda. Escolhi o mercado mais distante e fui a pé. Exercícios e vitD, dois inimigos de leitores como eu. E lá me fui. Metade do caminho, já exausto e ardendo, encontro um oásis: um sebo! E dos bons, pois escuro, entulhado, cheirando a pó e mofo, como um sebo precisa ser. Entrei, abduzido por aquela gruta de lombadas tentadoras. Duas horas depois chego em casa de volta. Nas mãos, sacolas repletas de livros velhos...e nenhuma pilha para o rádio que continua mudo.

Assim ficamos, prontos para 2021 com 2020 passado a limpo!

Fiquem bem e até o proximo!

Paulo Márcio
👴avô, 📝 poeta, e 📚 leitor voraz

📚Heloiche Lê
 

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