Acalanto para um Rio
Nada passa, nada expira O passado é um rio que dorme e a memória uma mentira multiforme.
Dorme do rio as águas e em meu regaço dormem os dias dormem dormem as mágoas as agonias, dormem.
Nada passa, nada expira O passado é um rio adormecido parece morto, mal respira acorda-o e saltará num alarido.
Dora, a Cigarra
— em O vendedor de passados, do escritor angolano José Eduardo Agualusa
As memórias só possuem valor simbólico por seu conteúdo, e abri-las sempre implica em assumir um risco.
Acordar o passado, como sugere a música que o personagem Félix Ventura escuta logo no início do livro O Vendedor de Passados, é deixar um rio atravessar o presente e trazer lembranças, mágoas e agonias, como se observa na letra da música.
Angalusa traça neste livro um enredo dos mais inusitados que já me deparei. Félix Ventura é um homem que nasceu diferenciado, é albino.
“A pele perfeita, muito negra, húmida e luminosa, contrasta com a do albino, seca e áspera, cor-de-rosa.”
Escolheu um estranho ofício: vende passados falsos, fictícios.
“Ele vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as fotografias dos avós e bisavós, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo.”
Seus clientes são prósperos empresários, políticos e generais da emergente burguesia angolana que têm um presente e um futuro próspero, mas falta-lhes um passado que não seja comprometedor.
“Eram empresários, ministros, fazendeiros, camanguistas, generais, gente, enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos.”
E arquitetar esse passado é a empreitada na qual o personagem principal Félix se encarrega, fabricando uma genealogia de luxo e memórias felizes:
“... gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de Assis, de um Cruz e Souza, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse sonho singelo.”
Como não bastasse este mote incrível, toda a narrativa é comandada por uma osga, espécie de lagartixa, que Felix chama de de Eulálio.
Eulálio também relata uma (ou duas?) supostas reencarnações, pois viveu outra vida como um homem comum por quase um século sem se sentir inteiramente humano, e que agora se lamenta desses quinze anos com a alma presa ao corpo de lagartixa.
“Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, ele ficará para sempre. (Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura).
Um nome pode ser uma condenação. Alguns arrastam o nomeado, como as águas lamacentas de um rio após as grandes chuvas, e, por mais que este resista, impõem-lhe um destino. Outros, pelo contrário, são como máscaras: escondem, iludem. A maioria, evidentemente, não tem poder algum. Recordo sem prazer, sem dor também, o meu nome humano. Não lhe sinto a falta. Não era eu.”
Esse é um pequeno rabisco do que é este livro. Multifacetado e que permite inúmeras interpretações e discussões das mais contemporâneas.
O livro foi lançado em 2004, dois anos após o término da guerra civil em Angola iniciada em 1975. Depois de uma guerra tão longa, tem-se um povo com problemas identitários latentes, que transborda em sua literatura. E se tratando de África, a questão da raça que define um povo também é um dos aspectos fortes do livro.
Sob o ponto de vista da linguagem, temos neste livro de Angalusa toda a sua poesia, com fortes sinais de sua vida em trânsito por três continentes: natural de Angola, com a vida dividida entre seu país de origem, o Brasil, onde viveu muitos anos, e Portugal. Assim vão os múltiplos temas a serem discutidos ao redor desse pequeno grande livro.
Mas o que me ressoou mais forte foi a questão do passado (re)construído.
Incrível pensar que neste momento em que escrevo estou construindo um passado. E quando reviro minhas inúmeras fotos vejo através delas diferentes passados que construí ao longo da vida. E no fundo meus passados são definidos pelo que as pessoas com as quais convivi contarão sobre mim.
Então, eu serei a filha do doutor, conhecido como tubarão de uma cidade pequena do interior, eu serei a professora de uma renomada universidade, eu serei a bisneta de um negro nascido em uma senzala, eu serei a mãe, a avó, a neta predileta...
Voltando ao livro, duas questões me parecem fundamentais:
É possível vender o passado?
É possível assumir outra identidade a ponto de não se saber o que é real ou fictício?
Não nos esqueçamos de que estamos na era da explosão das redes sociais, dos perfis inventados, dos perfis “maquiados,” das notícias mentirosas, da destruição de reputações, da triste manipulação da realidade, da era em que, mais forte do que nunca, vale a triste frase do nazista Joseph Goebbels:
“Uma mentira contada mil vezes, torna-se verdade.”
O livro do José Eduardo Angalusa tem quase 20 anos mas é de uma atualidade avassaladora.
Não posso terminar esse texto sem mencionar o livro fenomenal que li na última madrugada, e que certamente me será de digestão lenta no decorrer dos próximos dias. Achei que sabia de tudo sobre o poder das redes em criar mitos e destruir personalidades e descobri que tudo é muito pior do que imaginava.
A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital
por Patricia Campos Mello
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Triste passado em construção.
Se possível fiquem bem, fiquem em casa! Até a próxima!