Anna Kariénina e Helena

PASSAGEM

Como o tempo marca o tempo que o tempo marca?
Ou o tempo nada marca?
Nós marcamos o tempo que o tempo marca.
O revelamos impresso na pele, pois o levamos
impresso na alma.
Navega no sorriso branco,
como casmurra por sob o pranto.
O último de Dezembro é o dia do tempo.
Do tempo que muda o tempo, sem o mudar.
Do tempo que muda porque precisa mudar.
Do tempo que marca o tempo que o tempo marca.

— Paulo Márcio Vieira da Rocha


Sim, meu irmao poeta continua por aqui e regularmente teremos a alegria de seus textos. Um sonho meu que se concretiza. Uma parceria muito desejada e das mais amadas. Aqui mais uma edicao do escrita por ele.


Machado de Assis (1839‐1908) a despeito de ser um dos maiores escritores em língua portuguesa, era um indivíduo muito temperamental. Homem de autoestima cambiante, era presa fácil dos analistas literários. Reagia à críticas de forma calada, mas com atitudes de inaceitação e evidente revanche. Na raiz existencial destes sentimentos e comportamentos encontra-se sua condição de mulato, desprovido de dotes de beleza física para os padrões da época; de origem familiar pobre e pouco letrada. Ele mesmo, só tardiamente pode estudar, em escolas públicas, e nunca fez curso universitário. Enfim, de personalidade depressiva, vivia em eterno litígio consigo mesmo.

Quando Machado publicou A Mão e a Luva (1874), sofreu severas críticas, pois não reconheceram em sua obra as características próprias do romantismo. Com caráter fortemente psicológico, pairava num limbo de estilo impreciso. Incomodou-se com a acidez que seu livro foi recebido pela crítica e, atualizando sua linguagem, teria dito para si mesmo: "Ah é! Querem romantismo?? Pois me aguardem."

Assim nasceu Helena (1876). Então, sua terceira publicação. Em enredo rigoroso com todas as características e linguagem exigentemente românticas. Dramas, perdas, melancolias. Ciúmes, ódios e traições. Beleza fútil e eivada de ais. Enfim, todos os ingredientes próprios do estilo. Mas exagerou tanto na mão, que o transformou num "melado enjoativo"!, previsível e especialmente chato. É considerado por muitos críticos literários como sua pior obra. Na qual mostra-se mais descaracterizado em seus talentos como grande escritor.

Helena foi a penúltima publicação em sua fase romântica.

Não satisfeito, dois anos após (1878), ainda cheirando a provocação, retorna ao seu estilo psicológico de romance morno e enredo leviano, ao publicar Iaiá Garcia.

Para depois consagrar-se como um ícone do realismo brasileiro com seu verdadeiro pentateuco laico: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).

Voltando a Helena, deixou em mim uma forte impressão de ter-se cansado de seu próprio novelo de lágrimas apaixonadas e livrou-se de sua maçaroca piegas com um final rápido, dramático, curto e grosso. E respirou aliviado. Como eu, ao terminar de o ler.

Um homem de contradições, que viveu um casamento repleto de romance, por 35 anos, com sua amada Carolina Augusta, para quem, ao pé de seu leito de morte, deixou um comovente e apaixonado soneto, um dos mais belos escrito por um homem movido de amor:

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

— Machado de Assis


Uma obra de fôlego, escrita entre 1873 e 1877 numa grande fazenda rural de Leon Tolstói. Contava então com 45 anos de idade. Em uma Rússia dos Czares (Césares, ao modelo de Roma). Mais precisamente na era pós Napoleônica, quando a Rússia viria a se tornar um poderoso império após conquistas no Ocidente.

A obra, a define bem um crítico inglês, Matteu Arnold, em 1887, pouco depois de sua ruidosa publicação. Dizia ele:

Não se deve tomar Anna Kariénina como uma obra de arte. Deve-se tomá-la como um fragmento de vida.

Com o que eu concordo.

Ao longo de suas quase 900 páginas, Leon Tolstói empresta o realismo de pessoas de seu relacionamento de vida, inclusive a si próprio e seu casamento, (personagens centrais da trama, Liévin e Kitty) e, a partir deles, voa em fantasias imprevisíveis e inconstantes, a tal ponto que, a partir da realidade que os gerou, perder-se em total descaracterização. Cria tramas entre os seis principais personagens, invariavelmente baseadas em conflitos emocionais universalmente reconhecíveis, dando à obra um caráter sempre atual. Como seja: insegurança pessoal, ciúme doentio, reação patológica, arrependimento culposo e reparação conciliadora.

Anna Kariénina, Kitty, Liévin, Alexei Kariênin, Vronski e Dolly, os seis personagens que conduzem toda a narrativa, o fazem a partir de seus estados emocionais momentâneos, conflitos psicológicos e espirituais. Isto dá a toda história um sentido de constante imprevisibilidade que prende o leitor, mas, ao mesmo tempo, uma aura de antecipação que o distrai da leitura.

Outra característica de Tolstói é a manipulação brusca e, por vezes, incompreensível de seus personagens. Assim, Vronski, de um mero manipulador de sentimentos e conquistador em busca de auto afirmação, após conhecer Anna, torna-se num homem sério, denso, responsável, com valores opostos aos anteriormente mostrados. Alexei Kariênin, marido de Anna, alterna, sem motivo maior, comportamentos cruéis com ações beatificadoras. Stiepan, marido de Dolly, gerente severo de sua fortuna, torna-se um irresponsável, leviano e incapaz de sustentar sua crescida família. Há muita incoerência, mas sente-se a mão pesada de Tolstói manipulando seus personagens em busca da construção de desfechos que se enquadrem na realidade que os originou.

Dentro de uma mesma visão, Liévin e seus conflitos sociais de como gerenciar a vida dos mujiques e o trabalho no campo, foram os mesmos vividos pelo autor, ele também um produtor rural. Busca estas verdades em meio às suas inseguranças, sem encontrar respostas. Ao final, por mais uma virada epistemológica de Tolstói, de agnóstico descrente, a partir de motivo vil, torna-se o mais fervoroso temente a Deus e encontra, finalmente, um esboço de resposta.

Mas, em meio à contrastes e mudanças radicais, Tolstói cria uma estória que emociona, prende, encanta e surpreende. Não há como não identificar-se com seus personagens, tão parecidos com seus leitores. Leon é o principal personagem de Anna Kariénina e é real, ao mesmo tempo que é puro sonho. Alterna até cansativos diálogos de cunho político, social e religioso, com situações do mais puro lirismo poético. Como o encontro de Liévin e Kitty na sala de jogos. De fazer subir às nuvens no enlevo afetivo e amoroso que produz.

Não é sua obra prima, mas em Anna Kariénina (1877), Tolstói reafirma, depois de Guerra e Paz (1867), sua competência e talento como escritor. Despido de qualquer compromisso com verossimilhança, liberta-se e nos conduz célere e confiante a uma doce viagem, repleta de contrastes, em uma nave sem qualquer piloto, mas que chega exatamente ao destino que quer chegar.

Fiquem bem e até o proximo!

Paulo Márcio
👴avô, 📝 poeta, e 📚 leitor voraz

📚Heloiche Lê
 

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