Ler sempre é muito bom, mas tem leituras que me deixam muito desconfortável. No entanto, acredito que é um desconforto necessário.
Li recentemente um livro cujos relatos estão sempre ecoando em minha cabeça.
A autora Preta-Rara mantém uma página no facebook (@euempregdadomestica) que vale uma visita. A página continua super ativa e continua recebendo relatos, similares aos compilados no livro. Ela participa ativamente e atualmente é uma historiadora, rapper e ativista dos direitos da mulher, em especial da mulher negra.
E esse livro é uma coleção de relatos extraídos dessa página do facebook que ela administra.
No Brasil existe atualmente um contingente de cerca de 8 milhões de empregados domésticos, dos quais 93% são mulheres, e dessas 63% são negras. Lendo os relatos, me senti no Brasil colonial onde existiam sinhás e senhores supremos proprietários de tudo, inclusive de seus trabalhadores e seus corpos.
Histórias de estupros de meninas de 12 e 13 anos, que começam a trabalhar nessa idade, são inúmeros.
"... Então aos 12 anos, sozinha na casa de um cristão rígido, que levou mais três, poderosos, que são todos biblia, bala e boi, fui estuprada.
Vieram os quatro pegar a empregadinha pobre, que dava nojo, mas era gostosinha, e me curraram. Sim, aos 12 anos!
Não, nunca tive justiça, sim tentei, sim foi pior, pois “ uma ninguém” ousou contar."
Durante toda a leitura, fiquei pensando nas tão desrespeitadas leis trabalhistas que existem para empregados domésticos, o que leva as pessoas aceitarem abuso por pura falta de opções. Existem relatos de pessoas formadas em segundo e terceiro grau que acabam como domésticas porque não encontram emprego, principalmente por serem mulheres e negras.
“Preto no Brasil não pode enviar curriculo com foto, habitamos em um país racista, meu povo. Entreguem currículo sem foto aí vão chamar vocês para entrevistas. Façam esse teste.“
Preta-Rara relata ao contar sua própria história que ao terminar o ensino profissionalizante e procurar emprego, com uma boa formação, só começou a receber retorno para entrevistas quando retirou sua foto do currículo. E mesmo assim, após as inúmeras entrevistas, nada se concretizou e ela acabou empregada doméstica por sete anos, até conseguir se formar historiadora e começar a lecionar.
“... ser empregada doméstica não é apenas limpar , mas sim servir. E ser alguém inferior já está no imaginário coletivo da elite brasileira. É necessário romper os laços dessa profissão que, infelizmente, ainda é um grande resquício de uma abolição não conclusa.”
Ou como expressa outro forte depoimento:
“... passei num concurso público e falo: aquele tempo deixou marcas na minha alma, às vezes tenho esse pensamento e logo peço perdão a Deus, mas volte e meia ele retorna: se um dia tudo der errado, e eu tiver que virar doméstica de novo, EU ME MATO!! Por favor nao me julguem..."
Como dormir tranquila com um barulho desses? Só posso recomendar, a todos que estão aí pensando “mas que exagero”, “eu trato tão bem minha ajudante’”, “ela é ‘como se fosse da família’” que leiam esse livro. É essencial.
Como para mim cinema e literatura são grandes paixões, esse tema me fez lembrar e rever três filmes muito bons e imperdíveis.
Que Horas Ela Volta? é um filme brasileiro de 2015, do gênero drama, escrito e dirigido por Anna Muylaert. O filme é protagonizado por Regina Casé e trata dos conflitos que acontecem entre Val, uma empregada doméstica do Brasil e seus patrões de classe média alta, criticando as desigualdades da sociedade brasileira.
Filme brasileiro de 2001 e primeiro longa do aclamado diretor Fernando Meirelles. Empregadas domésticas contam suas desventuras em busca de futuro melhor ou da patroa perfeita. Limpam casas e sonham com carreira de modelo, casamento, um marido melhor, estudos. Cinco delas têm expectativas diferentes, mas vivem a mesma realidade.
Achei o filme tristíssimo, apesar do Wikipedia o classificar como “comedia.”
E por último talvez o mais conhecido, de todos:
Um filme de 2012, cujo título original é The Help. Nos anos 60, no Mississipi, Skeeter é uma garota da sociedade que retorna determinada a se tornar escritora. Ela começa a entrevistar as mulheres negras da cidade, que deixaram suas vidas para trabalhar na criação dos filhos da elite branca, da qual a própria Skeeter faz parte. Aibileen Clark, a emprega da melhor amiga de Skeeter, é a primeira a conceder uma entrevista. Apesar das críticas, Skeeter e Aibileen continuam trabalhando juntas e, aos poucos, conseguem novas adesões.
Como concluir essa postagem sobre um assunto tão árido como o racismo, se estou longe de ter esse lugar de fala? Deixo então para a autora do livro as palavras finais:
“... Não podemos aceitar que esse trabalho seja hereditário para as mulheres pretas.
... O trabalho doméstico como muitos dizem por aí, e um trabalho como qualquer outro, porém eu não conheço ninguém que deseje isso para seus filhos.
Desejo muito que esse livro chegue e toque a empatia das pessoas que tem profissionais domésticas trabalhando em suas casas, pessoas que criam as leis nesse país que realmente, pessoas possam garantir os direitos das trabalhadoras domésticas.”
E mais uma vez, recomendo que leiam o livro, vejam os filmes, essenciais para entendermos o Brasil.