Cachorros na vida e na literatura

Toda minha vida adulta foi acompanhada por cachorros. Já cheguei a ter 3 ao mesmo tempo. Atualmente, uma pequena teckel idosa ranzinza chamada Kira me acompanha. De todas as raças e não raças possíveis, eu gosto muito de tê-los por perto.

Mas estou longe de ser daquelas pessoas que os tratam como filhos. Quando os tinha de porte grande eram os cães de quintal, sem acesso a casa. Os menores dentro de casa, mas sem nunca andar pelos sofás ou camas.

Relembrando todos, percebi que a maioria era fêmea. O motivo era o mais pragmático possível: não faziam xixi para cima. Não tinha nenhuma intenção mercantilista com relação aos possíveis filhotes. Das fêmeas que tive, duas procriaram - uma linda pastora chamada Samantha e Nina, uma labradora.

Nina, que ficou prenha dada a insistência de meus filhos, teve onze filhotes. Lindos e ela uma péssima mãe. Não queria amamentar e fugia dos filhos sempre que encontrava uma brecha. O curioso é que, na mesma época, tínhamos uma Golden Retriever, a Kika, que a qualquer oportunidade tomava o lugar da Nina junto aos filhotes. Claro que com suas tetas secas era rapidamente repelida e não conseguia cessar a choradeira.

Gostar de cachorros me leva a gostar de filmes e livros sobre cachorros - a denominada “literatura canina”.

Quem não se lembra do enorme sucesso de Marley e Eu, e da sua não tão feliz continuação. Inclusive Nina chegou em casa por influência desse filme.

O primeiro livro que li da Virginia Woolf foi Flush: Uma biografia. Um dos últimos livros de Woolf, diz a lenda que o escreveu enquanto se recuperava do esgotamento que tinha sido escrever As ondas. Sim, o escritor descansa escrevendo, da mesma forma que o leitor recupera-se de uma leitura densa, lendo algo leve.

Os temerosos de Woolf ficam imaginando como seria ela falando de cães usando todo seu estilo de fluxo de consciência, considerado muito hermético e de difícil leitura. Mas não é nada disso.  Flush é uma história  leve e divertida. Para os amigos e familiares, Virginia Woolf resumiu Flush como uma grande brincadeira sua. Ah se todo escritor brincasse dessa forma!

A proposta deste livro era biografar a vida do cachorrinho de Elizabeth Barrett, uma famosa poetisa do Romantismo inglês do século XVIII.

Uma biografia de um cão?! Pode isso? Para Woolf, podia sim. Ao ler as cartas de Elizabeth a seu futuro marido, Robert Browning, trocadas ao longo de vários anos, ela ficou encantada com a história de amor deles.

E nesse material, havia sempre a menção a Flush, o Cocker Spaniel de estimação da poetisa. O cachorrinho ruivo era a grande companhia de Elizabeth Barrett, principalmente na fase em que, seriamente doente, precisou passar longas temporadas em seu quarto.

As citações a Flush chamaram tanta a atenção de Virginia Woolf que a escritora resolveu fazer a reconstituição da vida do bichinho. Misturando realidade (fatos extraídos das cartas de Barrett) e ficção, ela narrou, em “Flush – Memórias de um Cão”, a trajetória do cachorrinho de Barrett do nascimento até sua morte.

Para aqueles que não gostam de cães pode parecer um livro bobinho, infantil até. Mas nas mãos de Virginia Woolf está longe disso. Além de conceder o protagonismo do seu romance a um Cocker Spaniel (que por si só já era bastante ousado para a época), ela salpica, em seu texto, fartas doses de crítica social e de humor ácido.

Como consequência, temos uma paródia genial sobre a sociedade burguesa do período vitoriano e sobre o gênero biográfico. É realmente hilário! Experimentem, gostando ou não de cachorros.

Nem preciso dizer da vontade que fiquei em ter uma cocker. Mas na época não cabiam mais cachorros em casa, então dei para uma sobrinha de aniversário uma linda cocker preta, a Cleópatra, que foi muito feliz por anos..

Também no delicioso livro A segunda vida de Missy, uma cachorra chamada Bob possibilita que uma idosa, com vida solitária e vazia, perceba o quanto de amor ela ainda tem a dar e receber.

O livro não é sobre Bob, mas sobre o empurrão que o ter que sair com a cachorra, levou Missy à vida fora de suas quatro paredes. Bob quebrou a casca, pode-se dizer em analogia ao nascimento a partir de um ovo. Em pouco tempo, ela se vê rodeada por uma comunidade alegre e diversa.

Missy encontra uma nova razão para viver. Um retrato bastante bom e emocionante sobre a vida adulta e o envelhecimento, A Segunda Vida de Missy é uma celebração de como os dias comuns podem ser extraordinários quando estamos cercados de pessoas queridas. Essa percepção para Missy veio depois de ganhar Bob.

Ontem li um pequeno livro de uma escritora colombiana - Pilar Quintana - que não conhecia. Um pequeno livro devastador.

Ouvi falar desse livro pela primeira vez quando a autora, Pilar Quintana, foi uma das convidadas pela Flip 2020 que aconteceu virtualmente. Ela em uma entrevista falou de A cachorra de uma forma intrigante:

"A Cachorra é um livro cheio de monstros. O mar é um monstro que engole as pessoas e as cospe. E as devolve horrível, deformada, cheirando mal, comida. A selva também traga os seres e os devolve em mau estado. Mas eu creio que o mais horrível da Cachorra é que a personagem em um momento, ela sempre que se sentiu tão boa, e sempre tentou mostrar-se tão boa, porque se esforçou toda a vida em ser boa, ela descobre que o monstro nao esta la fora, e sim que ela tem o monstro por dentro. Não quero dar nomes ao que acontece em A Cachorra, porque não quero dar spoiler a quem nos ouve, mas, o que tem que acontecer na minha vida para que eu me converta num ser horrível que eu não reconheco?"

Impossível não ser fisgada por essa descrição. A história é sobre Damaris, que mora numa casa de praia no litoral colombiano na parte do Pacifico,onde a floresta e a praia se encontram. De uma pobreza, para mim, super reconhecível enquanto brasileira.

Ela e o marido, assim como outros da comunidade, trabalham como caseiros de casas de veraneio e de trabalhos informais em época de turistas. E aí o contraste, tão notável também em nosso litoral, de lindas e enormes casas vazias a maior parte do tempo e de insalubres casebres.

A vida de Damaris, além de muitos terrores ligados a sua condição precária de vida,é marcada pelo desejo de ter filhos e pela tristeza de não conseguir.

“Sentia que a vida era como a angra e que ela precisava atravessá-la caminhando com os pes enterrados no barro e a água até a cintura, sozinha, completamente só, em um corpo que não lhe dava filhos e só servia para quebrar coisas”

Num certo ponto do livro ela adota uma cachorra filhote, a qual dá o nome de Chirli, que seria o nome que pretendia dar a sua filha caso tivesse tido. Damaris estabelece uma relação de mãe com filha com relação a Chirli e todos os seus monstros vêm à tona quando Chirli foge e retorna prenha. Um livro a nunca ser esquecido dada a complexidade de temas que trata.

E concluindo, lembrei da Nina pois Chirli também foi péssima mãe. Para Damaris, foi impossível entender isso, ela e todo o seu desejo de ser mãe e a relação humanizada que estabeleceu com sua Cachorra.

Uma coisa é certa, nessa longa pandemia que estamos vivendo não há quem não tenha estreitado, ainda mais, seus laços com esses nossos grandes companheiros - os pets - sejam eles de caninos, felinos, …. E como é gostoso encontrá-los na literatura e em bons filmes.

Fiquem bem, e até a próxima.

📚Heloiche Lê
 

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